segunda-feira, 14 de outubro de 2013

DE FREUD À GÍRIA: RECALQUE BATE, VOLTA E MUDA DE SIGNIFICADO.

Campeão de uso nas redes sociais e estrela de vários funks, termo emprestado da Psicanálise se transformou em sinônimo de inveja.
Por Bianca Castanho
Segundo o Grande Dicionário Houiass da Língua Portuguesa (Editora Objetiva), “recalque” significa “mecanismo de defesa que, teoricamente, tem por função fazer com que exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a elas ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias”. Já para a funkeira Valesca Popozuda, “recalque é tudo aquilo que as pessoas criticam querendo fazer igual, mas não têm capacidade para isso”. Definições diferentes, mas ambas verdadeiras.
Recalque é uma mistura de inveja, mágoa e falta de capacidade.
Cunhado por Sigmund Freud, o termo “recalque” era originalmente usado para expressar uma defesa mental. “Todas as mentes humanas recalcam. É uma forma de proteção”, explica o psicanalista do Instituto Brasileiro de Ciência e Psicanálise (IBCP), Wilson Buran.
Na psicanálise, o recalque é definido como uma técnica de preservação. Em momentos extremos, de descargas emocionais intensas, é ativado este mecanismo de repressão da emoção. Mas conter esse furacão emotivo resulta em problemas ainda maiores. “A pessoa recalca: ela guarda o que sente. Mas isso volta como sintoma, tanto no corpo físico quanto no comportamento. Pode-se ficar doente, agressivo e até mudar a maneira de se portar”, explica Buran.
 Pardal Produções/ Marcelo Faustini
A funkeira Valesca Popozuda (foto) canta 'Beijinho no Ombro', música que fala sobre o recalque das 'inimigas'

BEIJINHO NO OMBRO
Não é possível precisar o motivo da popularização do termo. Para Vitor Ângelo, jornalista e autor do “Aurélia – A Dicionária da Língua Afiada” (Editora do Bispo), ao contrário de muitas gírias que conquistam a língua diária, o novo “recalque” não deve ter nascido no universo LGBT. “Conheço o termo da psicanálise e a versão popular, que denomina uma pessoa ressentida. O que tem é equivalência no universo gay, onde é muito usado o ‘mágoa de cabocla’”, explica.
Já para um dos donos do perfil Tipos de Biscat no Twitter (@tiposdebiscat), Leonardo Polo, a palavra ganhou destaque no Orkut, rede social que precedeu o Facebook. “A primeira vez que eu ouvi foi no colégio. É muito de época de Orkut, principalmente das piadinhas de briga entre divas, como Britney Spears. O recalque aparece nesse contexto da inveja”, comenta.
Polo também é um dos organizadores da festa Recalque, famosa na noite paulistana. “A gente sempre ouviu bastante [a palavra], então resolvemos pegar um termo cultivado e que fosse frase feita, com sonoridade legal. O curioso é que escolhemos esse nome antes do boom do ‘recalque’”, comenta. Ele diz que o que mais desperta a curiosidade geral é o fato de uma palavra associada a algo negativo servir para batizar uma festa. “Todo mundo fica querendo saber o que é isso”.
Para o psicanalista Wilson Buran, a popularização do termo sem o sentido original é um fato comum, que acontece quando leigos se apropriam de uma palavra sem utilizar o entendimento acadêmico.
Vitor Ângelo atribui a fama do recalque à popularização de outros transtornos. “Hoje em dia, se você está alegre em um momento e triste no outro, você é ‘bipolar’. Não significa que seja diagnosticado, mas houve uma popularização da psicanálise”, comenta.

A disseminação do recalque também é sentida nos estilos musicais, especialmente no funk. Desde os anos 2000, músicas com enredos e títulos referentes a recalque e derivados dominam as playlists de jovens frequentadores de baladas noturnas. Lançada em 2013, a música “Beijinho no Ombro”, do projeto solo de Valesca Popozuda, emprega o termo como sinônimo de inveja.
"É uma música que não precisa de palavrão, ela é forte. ‘Beijinho no ombro’ é uma gíria usada há muito tempo e afastar a inveja é necessário”, comenta a funkeira, que não lembra quando foi a primeira vez que ouviu a palavra, mas recomenda banho de sal grosso e beijinho no ombro para combater os males do “recalque”.