Campeão de uso nas redes sociais e estrela de vários funks,
termo emprestado da Psicanálise se transformou em sinônimo de inveja.
Por Bianca Castanho
Segundo o Grande Dicionário Houiass da Língua Portuguesa
(Editora Objetiva), “recalque” significa “mecanismo de defesa que,
teoricamente, tem por função fazer com que exigências pulsionais, condutas e
atitudes, além dos conteúdos psíquicos a elas ligados, passem do campo da
consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências
contrárias”. Já para a funkeira Valesca Popozuda, “recalque é tudo aquilo que
as pessoas criticam querendo fazer igual, mas não têm capacidade para isso”.
Definições diferentes, mas ambas verdadeiras.
Recalque é uma mistura de inveja, mágoa e falta de
capacidade.
Cunhado por Sigmund Freud, o termo “recalque” era
originalmente usado para expressar uma defesa mental. “Todas as mentes humanas
recalcam. É uma forma de proteção”, explica o psicanalista do Instituto
Brasileiro de Ciência e Psicanálise (IBCP), Wilson Buran.
Na psicanálise, o recalque é definido como uma técnica de
preservação. Em momentos extremos, de descargas emocionais intensas, é ativado
este mecanismo de repressão da emoção. Mas conter esse furacão emotivo resulta
em problemas ainda maiores. “A pessoa recalca: ela guarda o que sente. Mas isso
volta como sintoma, tanto no corpo físico quanto no comportamento. Pode-se
ficar doente, agressivo e até mudar a maneira de se portar”, explica Buran.
Pardal Produções/
Marcelo Faustini
A funkeira Valesca Popozuda (foto) canta 'Beijinho no
Ombro', música que fala sobre o recalque das 'inimigas'
BEIJINHO NO OMBRO
Não é possível precisar o motivo da popularização do termo.
Para Vitor Ângelo, jornalista e autor do “Aurélia – A Dicionária da Língua
Afiada” (Editora do Bispo), ao contrário de muitas gírias que conquistam a
língua diária, o novo “recalque” não deve ter nascido no universo LGBT.
“Conheço o termo da psicanálise e a versão popular, que denomina uma pessoa
ressentida. O que tem é equivalência no universo gay, onde é muito usado o
‘mágoa de cabocla’”, explica.
Já para um dos donos do perfil Tipos de Biscat no Twitter
(@tiposdebiscat), Leonardo Polo, a palavra ganhou destaque no Orkut, rede
social que precedeu o Facebook. “A primeira vez que eu ouvi foi no colégio. É
muito de época de Orkut, principalmente das piadinhas de briga entre divas,
como Britney Spears. O recalque aparece nesse contexto da inveja”, comenta.
Polo também é um dos organizadores da festa Recalque, famosa
na noite paulistana. “A gente sempre ouviu bastante [a palavra], então
resolvemos pegar um termo cultivado e que fosse frase feita, com sonoridade
legal. O curioso é que escolhemos esse nome antes do boom do ‘recalque’”,
comenta. Ele diz que o que mais desperta a curiosidade geral é o fato de uma
palavra associada a algo negativo servir para batizar uma festa. “Todo mundo
fica querendo saber o que é isso”.
Para o psicanalista Wilson Buran, a popularização do termo
sem o sentido original é um fato comum, que acontece quando leigos se apropriam
de uma palavra sem utilizar o entendimento acadêmico.
Vitor Ângelo atribui a fama do recalque à popularização de
outros transtornos. “Hoje em dia, se você está alegre em um momento e triste no
outro, você é ‘bipolar’. Não significa que seja diagnosticado, mas houve uma
popularização da psicanálise”, comenta.
A disseminação do recalque também é sentida nos estilos
musicais, especialmente no funk. Desde os anos 2000, músicas com enredos e
títulos referentes a recalque e derivados dominam as playlists de jovens
frequentadores de baladas noturnas. Lançada em 2013, a música “Beijinho no
Ombro”, do projeto solo de Valesca Popozuda, emprega o termo como sinônimo de
inveja.
"É uma música que não precisa de palavrão, ela é forte.
‘Beijinho no ombro’ é uma gíria usada há muito tempo e afastar a inveja é
necessário”, comenta a funkeira, que não lembra quando foi a primeira vez que
ouviu a palavra, mas recomenda banho de sal grosso e beijinho no ombro para
combater os males do “recalque”.